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quinta-feira, agosto 20, 2009

Apontamentos sobre o Homem Pigmento Floresta











Apontamentos sobre o Homem Pigmento Floresta

por Ítala Clay · 20/08/2009


Encontros são enriquecedores. Bons encontros são maravilhosos. Soube da existência do Coletivo Difusão Digital no início deste ano (2009), durante a passagem da Caravana Rumos Itaú Cultural 2009 por Manaus, no contexto das palestras de Christine Greiner sobre a importância do corpo nos processos de criação em arte contemporânea, e de Marcelo Evelin sobre processos de criação na dança. Ocasião em que fui convidada para a Mostra de Videodança 2 e pude perceber a proposta e o trabalho de seus integrantes: artistas das mais diferentes áreas, agregados em torno da investigação, mapeamento e produção de trabalhos entre as artes e a tecnologia, e mais especificamente a videodança. Interessante por ser um coletivo que vem realizando suas produções por meio de processos colaborativos, reforçando os valores do trabalho em parcerias, na contramão das práticas agonísticas das disputas pessoais e dos egos sobressaltados. Simplesmente querendo estar junto e ver o que acontece. Interessante ainda porque sendo difusão, busca a irradiação do que é produzido de uma maneira mais contundente, investindo na ampliação das conexões entre as produções locais em contextos nacionais e internacionais, além de promover atividades diversas, como grupos de estudos, seminários, oficinas e laboratórios experimentais.

No entanto, este texto não é sobre o Difusão Digital, mas sobre um artista e seu vídeo, que me foram revelados pela coletânea organizada em DVD, produto da primeira mostra de videodança realizada pelo coletivo. Trata-se do Homem Pigmento Floresta, com roteiro e direção de Odacy de Oliveira. Formado em Educação Artística pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e atualmente professor do Instituto de Educação do Amazonas (IEA), Odacy encontrou neste colégio público um espaço no qual vem construindo projetos de arte e educação desde 2002, através do Núcleo de Arte Contemporânea. Um percurso que se desdobrou em várias premiações e mais recentemente, em 2008, na criação do Grupo de Arte Contemporânea. Explorando as linguagens do teatro, performance, dança e pintura corporal, o artista busca abordar simultaneamente, de maneira poética, algumas questões sociais e ecológicas, tornando possível o desencadear de uma série de reflexões acerca da representação da cultura e da natureza na região amazônica.

No seu primeiro videodança, Homem Pigmento Floresta, é possível verificar a existência e insistência de alguns índices do que pretende desenvolver: uma natureza-ambiente longe de uma representação meramente descritiva ou decorativa. Nas palavras de Odacy, “… estou cansado de ver a representação por clichês, a peneira, as casinhas, isso tanto na dança quanto na pintura, e a minha ânsia é justamente outra coisa. A gente está trabalhando a questão ambiental, mas tenta fazer de forma diferente, e o que para mim é mais interessante é que, quem assiste acaba tendo esse desejo ecológico e, fica poético o que a gente faz.” Natureza e cultura podem então movimentar-se, prenhes de possibilidades de experimentação, articulação de sentidos, sinestesias e, embora escapem aqui e ali resíduos de uma gestualidade ambientada em práticas, por assim dizer, mais tradicionais das artes cênicas, a obra de Odacy traz um certo frescor. Aponta para outros caminhos, adensa-se em propor a abertura de novas possibilidades interpretativas para a Amazônia. Nos faz pensar, por um lado, sobre as evidentes formas de representação artística, teimosas em replicar questões que se constituem muito mais no olhar de fora, no olhar estrangeiro e menos em um processo de autorreflexão e, por outro, na autonomia do pensamento artístico, em seu caráter investigativo, mesmo que as condições sociais e políticas não sejam favoráveis.

Historicamente é oportuno lembrar que, em Manaus, durante décadas, essa busca por uma poética afastada de um regionalismo piegas, para turista ver, para vender o exotismo e o lugar comum, tem sido preocupação cotidiana entre seus moradores. O que se pode exemplificar nas falas de pesquisadores, cientistas sociais, jornalistas e artistas. Nos anos de 1970, a publicação de A Expressão Amazonense, do escritor Márcio Souza, já apontava para as más intenções dos ideais preservacionistas na região. Nesses discursos, em evidência, uma percepção utilitária e capitalista da natureza. Nos anos de 1980, as atividades de alguns grupos de dança como o Dançaviva, o Origem e o Núcleo Universitário de Dança Contemporânea (Nudac) foram relevantes para que se pudesse colocar em cena algumas questões sociais, urbanas e corporais mais latentes da época. Algo que encontra eco nos jornais locais dos anos de 1990 e se avoluma e legitima no diálogo com os intelectuais e artistas de outras áreas que não a dança, principalmente no caderno de cultura do jornal A Crítica, no qual se apresentavam constantes pautas tendo por conteúdo as polêmicas declarações cruzadas entre políticos e artistas sobre o abandono e o folclorismo das artes. Lembro ainda, para finalizar este rol de exemplos, a pertinência do ambiente ficcional do romance Cinzas do Norte, do escritor Milton Hatoum, no qual os personagens Mundo (Raimundo) e Arana nos remetem à reflexão sobre o papel do artista no confronto entre a função social da arte e a sua sujeição ao mercado. Pena que estas vozes possuam pouca exposição na mídia nacional e internacional.

É claro que não se pode negar que uma série de notícias sobre a Amazônia nos bombardeiam diariamente. No entanto, é fato que apresentam conceitos e apontam métodos de desenvolvimento que sugerem colonialismo e monoculturas, no sentido do cientista político Boaventura de Souza, na medida em que se constroi uma autoidentificação na qual nos configuramos como o ignorante, o residual, o inferior, o local e o improdutivo. As palavras em uso e as metáforas que nos definem, se, por um lado refletem legitimidade com relação às situações de degradação ambiental e exclusão social dos 25 milhões de habitantes, em muitos casos parecem refletir um discurso de salvacionismo e vitimização. A sensação é estranha… E em todos esses casos há um indicativo de passividade. O que parece levar para longe as aspirações de autonomia, bem como reforçar a ideia da impossibilidade de alternativas de transformação da realidade. Todos parecem nos conhecer, mas ninguém sabe de nós ao certo, nos imaginam, nos deduzem em termos de beneficiamento político e principalmente econômico. Pouco se fala da cultura do povo e de nosso estar no mundo como cidadãos. Ainda há um pouco do exótico e um muito de ignorância. Daí a necessidade de se trocar a lógica das monoculturas, por uma ecologia dos saberes. É por isso que o trabalho de Odacy é importante, pois o Homem Pigmento Floresta, que hoje já se desenvolveu em outras formas visuais e audiovisuais - posto que o artista continua trabalhando sobre sua proposta estética -, declaradamente não se trata de uma obra acabada, constitui-se como parte de um processo de construção artística e, como tal, solicita uma leitura no tempo. Odacy está maturando e reescrevendo, reeditando, refazendo, de modo lento e contínuo sua ideias. Para ele, este foi apenas um começo…

http://idanca.net/lang/pt-br/2009/08/20/apontamentos-sobre-o-homem-pigmento-floresta/12027/